sexta-feira, 9 de abril de 2021

José Saramago, o tradutor de Charles Baudelaire

 

Capa da 4.ª edição de Os paraísos 
Artificiais, na tradução de José Saramago

O universo literário celebra neste 9 de abril de 2021 o bicentenário de Charles Baudelaire. Entre a extensa lista de obras traduzidas por José Saramago está o livro de ensaios Les paradis artificiels (Os paraísos artificiais), publicado em Portugal pela editora Estampa, em 1971.
 
Tomado pelos registros de Thomas De Quincey em Confissões de um comedor de ópio e nas próprias experiências com o haxixe, o ópio e o vinho — em parte vivenciadas no Club des Hachichins, círculo de artistas e intelectuais que se reuniam no Hotel Pimodan — o livro de 1860 analisa os efeitos dessas substâncias.
 
Entre os textos que formam o livro está o conhecido poema “Embriagai-vos”, traduzido na versão em prosa aparecida pela primeira vez na edição de 7 de fevereiro de 1864 do Figaro e mais tarde acrescentado à edição póstuma de Petits poèmes en prose (1869). Eis a tradução de José Saramago:
 
EMBRIAGAI-VOS
 
Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que esmaga os vossos ombros e vos faz pender para a terra, deveis embriagar-vos sem tréguas.
 
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos.
 
E se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais, já diminuída ou desaparecida a embriaguez, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a todo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio, vos responderão: “São horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.

sábado, 10 de outubro de 2020

“O ano da morte de Ricardo Reis”, de João Botelho, no Brasil

 


 
Entre os dias 22 de outubro e 04 de novembro de 2020 acontece em São Paulo a 44ª Mostra Internacional de Cinema. Este ano, devido a pandemia do Corona vírus, toda a programação estará disponível a partir da plataforma de streaming Mostra Play.

Entre os mais de cem filmes de várias partes do mundo que integram a mostra está O ano da morte de Ricardo Reis, do diretor português João Botelho. Esta é uma leitura original sobre um dos romances mais importantes de José Saramago. O enredo acompanha os últimos dias de um dos heterônimos de Fernando Pessoa que esteve exilado no Brasil durante 16 anos e regressa ao seu país natal logo depois da morte do seu criador e outra vez em fuga dos ventos revolucionários.
 
O site da Mostra é este.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A edição n.12 da Revista de Estudos Saramaguianos está online

 


 
Em 2020 passam-se quatro décadas da primeira edição deste que é considerado o romance com o qual José Saramago inaugura seu estilo único de narrar ― Levantado do chão. Para sublinhar essa data, a Revista de Estudos Saramaguianos propôs o dossiê que agora se publica: Voltar a Levantado do chão, um romance dentro e fora de seu tempo. Este 12º número do periódico é editado em dois volumes: em cada um deles, o leitor percebe melhor as linhas evidenciadas no tema proposto.

No volume n.1, estão textos de Pedro Fernandes de Oliveira Neto, David G. Frier, Sílvia Amorim, Diego José González Martín, Maria Regina Barcelos Bettiol, Luís Alfredo Galeni, M. Diakhité, María Ximena Rodriguez, Claudia N. Ruarte Bravo e Rodolfo Pereira Passos; no volume n.2, escrevem Miguel Alberto Koleff, Andrea Bittencourt, Maria do Socorro Furtado Veloso, Henrique Alberto Mendes, José Gonçalves, Juliana Moraes Belo e María Victoria Ferrara.

A 12ª edição da Revista de Estudos Saramaguianos se completa com registros iconográficos do escritor e uma seção intitulada “Dois documentos em torno do Levantado do chão”; nela, dois textos singulares. O primeiro é uma leitura crítica de Óscar Lopes de pouco mais de um ano depois da primeira edição do romance em homenagem; raridade entre os leitores mais recentes da obra de Saramago, este texto se oferece entre as primeiras leituras acolhedoras de maior fôlego pela academia em torno do romance e do seu escritor. E, o segundo, a reprodução do discurso de José Saramago pela aceitação do Prêmio Cidade de Lisboa, em 1982, primeiro reconhecimento mais expressivo numa carreira literária que havia começado ainda aos 24 anos quando publicou seu primeiro romance.

A edição está disponível aqui.


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Estreia de “O ano da morte de Ricardo Reis”, de João Botelho

 


 
A leitura cinematográfica de um dos romances mais importantes da grandiosa obra de José Saramago já está pronta para sair e correr o mundo. A sessão de ante-estreia acontece no Teatro Nacional São João, no Porto. Mesmo essa decisão tem sua força simbólica: foi nesta cidade que a 19 de setembro de 1887 nasceu Ricardo Reis.
 
O filme que o faz regressar de um todo a sua terra natal lida, como o título enuncia, com sua morte. Este foi o único dos heterônimos de Fernando Pessoa cujo destino pareceu envolvo nas brumas de um desaparecimento nas selvas do Brasil, país para onde migrou tão logo estourou em 1919 uma rebelião que defendia, em plena república, restaurar uma Monarquia do Norte. O romance de José Saramago acrescenta o destino que faltou a Reis e este ganhou o movimento das imagens em preto-e-branco pelas lentes de João Botelho.
 
Depois, o filme ganha estreia nos cinemas portugueses que começam a regressar timidamente depois da primeira onda do Corona vírus na Europa. Ainda não existe previsão de quando chegará ao Brasil.
 
Para mais informações visite aqui.
 
E, para ver o trailer, visite aqui.
 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Mario Benedetti visto por José Saramago




A admiração e a amizade de José Saramago por Mario Benedetti estão em vários registros públicos. Três deles aparecem no mês de maio de 2009, entre a convalescença e a morte do escritor uruguaio, no blog mantido pelo amigo português havia um ano. Neste dia 14 de setembro de 2020, quando se passa o centenário de Benedetti, eis os textos. Com eles, junta-se uma nota publicada no jornal El País. A cada texto estão as referências para explicar a procedência da matéria.
 
BENEDETTI
 
O susto foi grande, Mario Benedetti estava no hospital e o seu estado era considerado grave. Ángel González foi-se-nos quase sem aviso, numa fria madrugada de Janeiro. Que agora fosse a vida de Benedetti a estar em perigo lá no seu distante Montevidéu era algo que a preocupação aqui despertada não se resignava a aceitar. E, contudo, nada podíamos fazer. Enviar telegramas, à antiga usança? Mandar recados por algum amigo? Rezar uma oração pelo seu pronto restabelecimento, se com isso não fôssemos provocar a ira laica de Mario? Pilar encontrou a solução. Que era em verdade Mario Benedetti, que havia sido ele em toda a sua  vida, muito mais que as múltiplas profissões exercidas? Poeta. Então arranquemos os seus poemas à imobilidade da página e façamos com eles uma nuvem de palavras, de sons, de música, que atravesse o mar atlântico (as palavras, os sons, a música de Benedetti) e se detenha, como uma orquestra protectora, diante da janela que está proibido abrir, embalando-lhe o sono e fazendo-o sorrir ao despertar. Aos médicos alguma coisa se ficou a dever, reconheçamo-lo, mas nós, todos os que ao redor do mundo demos a nossa contribuição pessoal, juntando poemas de Benedetti aos poemas de Benedetti, tivemos também a nossa parte no trabalho. Mario Benedetti está melhor. Leiamos então um poema dele.
 
(SARAMAGO, José. “4 de maio de 2009: Benedetti”. In: O caderno 2. Lisboa: Caminho; Fundação José Saramago, 2009, p.76-77)
 
 
POETAS E POESIA
 
Não será com todos nem será sempre, mas às vezes acontece o que estamos vendo nestes dias: que, por ter morrido um poeta aparecem, em todo o mundo, leitores de poesia que se declaram devotos de Mario Benedetti e que precisam de um poema que expresse o seu desconsolo e talvez também para recordar um passado em que a poesia teve lugar permanente, quando hoje é a economia que nos impede de dormir. Assim, vemos que de repente se estabelece um tráfico de poesia que deve ter deixado perplexos os medidores oficiais, porque de um continente a outro saltam mensagens estranhas, de factura original, linha curtas que parecem dizer mais do que à primeira vista se crê. Os decifradores de códigos não têm mãos a medir, há demasiados enigmas para decifrar, demasiados abraços e demasiada música acompanhando sentimentos que são demasiados: o mundo não poderia suportar muitos dias desta intensidade emocional, mas tão-pouco, sem a poesia que hoje se expressa, seríamos inteiramente humanos. E isto, em poucas linhas, é o que está sucedendo: morreu Mario Benedetti em Montevideo e o planeta tornou-se pequeno para albergar a emoção das pessoas. De súbito os livros abriram-se e começaram a expandir-se em versos, versos de despedida, versos de militância, versos de amor, as constantes da vida de Benedetti, junto à sua pátria, aos seus amigos, ao futebol e alguns boliches de trago largo e noites mais largas ainda. Morreu Benedetti, esse poeta que soube fazer-nos viver os nossos momentos mais íntimos e as nossas raivas menos ocultas. Se com os seus poemas saímos à rua – lado a lado somos muito mais que dois –, se lendo “Geografias”, por exemplo, aprendemos a amar um país pequeno e um continente grande, agora, segundo as cartas que chegam à Fundação, recuperaram-se momentos de amor que deram sentido a tempos passados, e quem sabe se presentes. Isso também o devemos a Benedetti, ao poeta que ao morrer fez de nós herdeiros da bagagem de uma vida fora do comum.
 
(SARAMAGO, José. “19 de maio de 2009: Poetas e poesia”. In: O caderno 2. Lisboa: Caminho; Fundação José Saramago, 2009, p.93-94)
 
 
TANIA E MARIO: A LIBERDADE
 
Não é verdade que o mundo está todo descoberto. O mundo não é apenas a geografia com seus vales e montanhas, seus rios e seus lagos, suas planícies, os grandes mares, as cidades e as ruas, os desertos que veem passar o tempo, o tempo que nos vê passar por todos. O mundo é também as vozes humanas, esse milagre da palavra que se repete todos os dias, como uma coroa de sons viajando no espaço. Muitas dessas vozes cantam, algumas cantam verdadeiramente. A primeira vez que ouvi Tania Libertad cantar tive a revelação das alturas da emoção que pode nos levar uma voz límpida, sozinha diante do mundo, sem nenhum instrumento que a acompanhe. Tania cantava à capela “La paloma”, de Rafael Alberti, e cada nota acariciava uma corda de minha sensibilidade até alcançar o deslumbramento. Agora, Tanina Libertad canta Mario Benedetti, esse grande poeta a quem também lhe serviria o nome de Mario Libertad... São duas vozes humanas, profundamente humanas, que a música da poesia e a poesia da música juntaram. Dele, as palavras, dela, a voz. Ouvindo-as estamos mais próximos do mundo, mais próximos da liberdade, mais próximos de nós mesmos.
 
José Saramago, nota para o disco Ese parentésis la vida, de Tania Libertad. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto a partir de “Tania y Mario: la libertad”, publicado em Outros cadernos de Saramago, dia 19 de maio de 2009. A nota também foi reunida em O caderno 2 (Lisboa: Caminho; Fundação José Saramago, 2009, p.94-95)
 
 
UM AMIGO, UM IRMÃO
 
A obra de Mario Benedetti, amigo, irmão, é surpreendente em todos os aspectos, seja pela extensão na variedade de gêneros que toca, seja pela densidade de sua expressão poética e pela extrema liberdade conceitual que utiliza. O léxico de Benedetti ignorou deliberadamente a suposta existência de palavras poéticas e de outras que não são. Para Benedetti, a língua, na sua totalidade, é poética. Lida a partir desta perspectiva, a obra do grande poeta uruguaio se nos apresenta, não apenas como soma de uma experiência vital, mas, sobretudo, como a busca persistente e conseguida de um sentido, o do ser humano no planeta, no país, na cidade ou na aldeia, em sua casa simplesmente ou na ação coletiva. São muitas as razões que nos levam à leitura de Benedetti. Talvez a principal seja essa, precisamente: que o poeta se converteu em voz de seu próprio povo. Ou seja, em poeta universal.

José Saramago, artigo publicado no jornal El País, em 18 de maio de 2009. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto.